Todos Pela Educação – 01 de outubro de 2014
Especialistas defendem um professor capaz de realizar bons diagnósticos para a criação de conhecimento na escola
Fonte: Profissão Mestre
Além dos baixos salários e das más condições de trabalho, problemas na formação inicial, na fase de indução profissional e no trabalho permanente de formação continuada são responsáveis pelas deficiências do sistema de ensino.
Nesse cenário, ao ser questionada sobre o que é um bom professor, Sonia Perin, professora titular da Faculdade de Educação (FE) da USP, ressalta a complexidade da profissão: “Exigem muito dessa pessoa que é o professor; querem que ele resolva os erros, todos os problemas da sociedade. Mas é preciso ter parcerias com a sociedade”. De acordo com ela, se a escola é uma instituição da sociedade, é preciso ter responsabilidade em todos os seus níveis. Para Sonia, o professor precisa de uma boa formação de modo que, ao longo da vida, entenda o seu aluno – sujeito fundamental – e o sentido da escola. “O professor é bom quando as instituições e a sociedade são boas. Agora, dificuldades vão existir. Mas o principal é o professor ter a postura de inquiridor, de aprender a cada situação, de entender o que se passa com o seu grupo de alunos, com a escola. Para isso, ele precisa ter espírito investigativo. É preciso, na formação inicial, fazer da profissão uma pesquisa em ação”.
Formação inicial
Segundo Bernadete Gatti, pesquisadora sênior da Fundação Carlos Chagas (FCC), a questão da formação inicial do professor no Brasil é grave, pois os profissionais vão para a sala de aula sem saber dar aula. “Às vezes não conhecem nem o currículo da educação básica. As licenciaturas estão na UTI [Unidade de Terapia Intensiva]”. Ela avalia que, apesar de muitos jovens optarem pela carreira, eles não têm na universidade uma formação adequada. “Desde que a licenciatura nasceu, ela sempre foi um adendo genérico do bacharelado”, explica Bernadete, que é uma das coordenadoras da pesquisa da FCC sobre formação de professores para o ensino fundamental. Quando esse aluno vai para o mercado de trabalho com essas deficiências, gasta-se mais; há custo para formá-lo na graduação e, depois, para fazer a mesma formação na formação continuada, considera a pesquisadora: “A nossa formação continuada não é propriamente uma formação continuada – que deveria aprofundar conhecimentos –, ela é suprimento”. Para Bernadete, a falta de políticas que atuem na formação inicial é uma questão muito grave, porque não há mudança curricular na estrutura dos cursos de licenciatura. “Os países avançados e emergentes têm em suas universidades um centro de formação de professores, mas aqui não há uma concepção de formação de professor da educação básica. Você forma o biólogo, e não o professor de biologia. Nós temos uma fragmentação formativa com uma tinta de educação. É preciso mudar a formação inicial, a estrutura, onde ela se faz, a dinâmica de como se faz e os conteúdos curriculares. Senão, vamos continuar repetindo os mesmos erros, e quem já está atuando ou está ingressando na carreira terá de receber uma formação em serviço”, afirma.
Recém-chegados e sozinhos
O professor português António Nóvoa, um dos maiores especialistas em formação de professores, falou com a Profissão Mestre sobre a fase de indução profissional, ou seja, o início da atuação docente. Segundo Nóvoa, esses dois ou três primeiros anos iniciais, momento em que alguém é introduzido na profissão, são decisivos para o professor. “Há 50 anos sabemos que esses são os anos mais importantes; no entanto, as pessoas estão completamente desprotegidas e sozinhas”, afirma Nóvoa.
Elisangela Carolina Luciano, professora de Mogi Guaçu (SP), é um exemplo desse início solitário. Ela conta que, na década de 1990, morava em uma cidade do interior cuja economia era baseada na agricultura e não havia muita opção de emprego, principalmente para as mulheres. Assim, o caminho natural foi seguir para o curso de Magistério, até como uma maneira de fugir do destino de trabalhar na lavoura. A escolha consciente pela profissão veio ao final do curso, quando ela entrou na faculdade. No início da carreira, ela já sabia que professor novo fica com as salas mais complicadas, com os alunos que têm mais dificuldades. “É claro que uma sala assim devia ser dada ao professor mais experiente, mas quem ingressava já sabia que ia pegar as salas mais complexas”, conta Elisangela, que foi escolhida Educadora do Ano de 2013 (por meio do Prêmio Educador Nota10, da Fundação Victor Civita), por seu projeto de alfabetização, leitura e escrita. Segundo ela, o começo é difícil. “É um trabalho muito solitário. É o professor dentro da sala de aula com a porta fechada”. Elisangela ressalta que ainda não se tem a consciência de que o aluno não é do professor. “O aluno é da escola, por isso todos devem se comprometer com ele. Eu acho que o que vai fazer o grupo ter esse sentimento de pertencimento é o desenvolvimento de um projeto político-pedagógico confeccionado por todos, que contemple todas essas questões. Daí, com papéis bem definidos, mesmo se chegar à escola um novo professor, o grupo já se encarrega de incluí-lo”, afirma.
Sem isso, Elisangela acredita que o cotidiano do professor seja quase sempre o mesmo, com cada um desenvolvendo o seu trabalho individualmente. “Eu tenho, por exemplo, dificuldade em seguir o livro didático, o material apostilado, e de repetir o trabalho feito no ano anterior. Estou sempre inventando e pensando coisas novas. A minha prática se identifica muito com os alunos daquele ano. Eu preciso conhecê-los para desenvolver um trabalho ajustado a eles”, conta. Apesar de no início do ano os professores se reunirem com a rede de ensino para pensar o planejamento anual, não há uma reunião com os professores na escola para conhecer o grupo de alunos com o qual eles trabalharão. “No dia a dia da escola, não há espaço para essas discussões tão necessárias”, lamenta Elisangela.
Para a professora da USP Sonia Perin, os primeiros anos são os mais críticos. “Nas reuniões internacionais sobre formação de professores, uma das preocupações a respeito do trabalho docente é como ele é recebido. Dessa forma, o seu trabalho, nos primeiros anos na escola, e o apoio do grupo e da equipe são fundamentais para o processo de aprendizagem dos iniciantes”, explica. E isso já é realizado não mais pela instituição formadora – as universidades, as faculdades de educação, os institutos etc. –, mas sim pelas instituições empregadoras que são os sistemas de ensino. “Depende muito dessas instituições formadoras também”, acrescenta.
Sonia defende que a formação inicial do professor deve inclusive dar um caráter de professor inquiridor. Dessa forma, ao chegar à escola, o professor iniciante pode questionar o que está se passando nela e observá-la sob diferentes aspectos: o tipo de aluno, de escola e de comunidade. “Sempre que a pessoa chega à instituição, ela é um objeto de análise. E se o professor aprendeu a fazer investigação na formação inicial, isso já lhe dá condições melhores para enfrentar o início em sala de aula”, considera a professora. Em recente pesquisa desenvolvida por ela com alunos que estão no início da graduação e com os egressos até cinco anos, é possível constatar essa dificuldade para enfrentar a realidade escolar. Sonia conta que os alunos pesquisados que estavam no terceiro e no quarto ano da graduação, ou seja, se preparando para sair da faculdade, contavam que não se sentiam preparados, pois estavam com medo das questões práticas do dia a dia.
Diante de uma sala de aula
O momento em que entrou na profissão foi decisivo para o professor Gelson Weschenfelder. Ele conta que teve um início bem complicado: “Eu entrei como estagiário e, infelizmente, a graduação não me preparou para a sala de aula. Na época em que eu entrei na escola, a filosofia não era obrigatória, e eu não sabia ao certo o que trabalhar em sala de aula. Na terceira semana, os alunos fizeram um abaixo-assinado para me retirar da escola. Isso foi muito difícil. Daí eu comecei a pensar sobre a minha atitude e o que poderia fazer para introduzir algumas questões de filosofia”, conta. E completa: “Usei uma frase que norteia a vida de um super-herói: ‘grandes poderes trazem grandes responsabilidades’, doHomem-Aranha. E o bacana foi que a partir daí os alunos começaram a trazer teorias de filósofos, sociólogos”, conta Gelson, que é professor no Complexode Ensino Superior deCachoeirinha (Cesuca), no Rio Grande do Sul. Nesse momento, o professor conta que percebeu que os alunos queriam buscar algo, tinham esse anseio, mas faltava um tema que os despertasse para isso. Assim, de maneira original – por meio de temas que chamam a atenção dos jovens, como as HQs (histórias em quadrinhos), ele mudou sua forma de dar aulas e conquistou os alunos.
Hoje Weschenfelder é professor universitário, mas o começo da carreira nos ensinos fundamental e médio o motivou a pesquisar mais sobre o tema. “O início foi difícil, e depois precisei pesquisar mais sobre como trabalhar com o adolescente, mas isso motivou meu mestrado. Depois saíram algumas publicações, algumas até com os alunos do ensino médio. Hoje faço o doutorado graças àqueles alunos que me colocaram ‘contra a parede’”, explica.
Ele reconhece que o processo poderia ter sido mais simples e menos sofrido. “Infelizmente, eu vejo essa angústia em sala de aula. A educação não está preparada para esses jovens em sala de aula, por isso é preciso repensar a forma de olhar o aluno. Em diferentes escolas, pedi apoio a outros professores para trabalhar com projetos, mas houve muita resistência deles. Faltam muitas coisas à escola e o professor acaba tendo muitas outras funções, mas ele poderia promover essa mudança onde está inserido”, salienta.