O Globo – por Paula Ferreira – 28/03/16
RIO — Num país onde 12% das crianças que chegam ao 3° ano do ensino fundamental são reprovadas, tornou-se latente o debate sobre a precariedade da alfabetização, uma das grandes responsáveis por esse gargalo. A preocupação vem se refletindo na elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Até o início deste mês, o documento que vai nortear o aprendizado nas escolas recebeu cerca de 12 milhões de sugestões de todo o Brasil. Essencial para a alfabetização, o período de transição do ensino infantil para o fundamental gerou debate.
— Há uma discussão muito importante sobre como construir uma relação entre a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental, de maneira que a educação infantil contribua para a alfabetização das crianças nos primeiros anos — afirma o secretário de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), Manuel Palacios.
A BNCC estabelecerá diretrizes que irão nortear o ensino público do país. Cerca de 60% do conteúdo das escolas brasileiras será composto pela Base, os outros 40% ficarão a cargo das instituições para garantir a existência de abordagens regionais. Para construir o documento, o MEC organizou uma consulta pública na internet que ficou aberta a contribuições de setembro de 2015 até o início deste mês. Durante esse período, foram mais de 300 mil cadastrados, dos quais 207 mil professores. Além dessas contribuições, um corpo de especialistas fornece pareceres críticos sobre o texto. Em abril, será apresentada uma nova versão do documento, e o modelo final será conhecido em junho.
— A Base Nacional Comum evidencia um problema que já existia — avalia a superintendente do movimento “Todos Pela Educação”, Alejandra Meraz Velasco, que critica o fato de a educação infantil não receber o devido destaque nas políticas educacionais.
— Apesar de a educação infantil ser parte da educação básica, ela continua sendo tratada separadamente: a estrutura da BNCC na educação infantil é totalmente diferente do ensino fundamental. Na educação infantil a Base estabelece campos de experiências e no ensino fundamental, por disciplinas. Não há uma ponte entre eles — comenta Alejandra, acrescentando que a alfabetização é um ponto, mas há diversos problemas que essa falta de integração gera.
Em um dos pareceres críticos, um dos especialistas da área de matemática analisa:
“… Não há como prever a transição desse nível (educação infantil) para o ensino fundamental. Mesmo que o documento da educação infantil não tenha foco na escolarização, tal como é concebido até então, o texto não deixa explícito como deve ser o processo de aquisição, pela criança, de alguns conceitos básicos, como, por exemplo, o de número. “
De acordo com Alejandra, o ideal é que cada etapa tenha um traço da outra, mas sempre assegurando o caráter central de cada período.
— A educação infantil não pode ser escolarizada, mas também não pode ser como era quando essas creches pertenciam à assistência social. A importância na Base é criar um conceito de educação infantil compartilhado por todos — observa.
Atenta à relevância da discussão, a equipe do Jardim de Infância Municipalizado Carlos Ribas, na cidade de Três Rios, no interior do estado do Rio, promoveu reuniões para discutir o conteúdo da nova proposta de currículo.
— A Base vai ser uma referência para o trabalho no país inteiro, isso vai ser uma ajuda grande. Aqui nos reunimos internamente para discutir o conteúdo e agora estamos nos reunindo com os pais para falar sobre o currículo. Chegamos à conclusão de que todos precisam de um núcleo comum. Irá contribuir para a promoção da igualdade de aprendizado para todos — conta a diretora da escola, Janis Pantola.
O Jardim de Infância Carlos Ribas sugeriu alteração de apenas um eixo da Base, pedindo a ampliação do repertório cultural das crianças no trecho sobre gestos e movimentos. Isto para que os alunos não exercitem somente os próprios costumes, mas também de outros grupos.
Na opinião de Marcelo Burgos, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e um dos responsáveis pela compilação das contribuições, as sugestões funcionaram como um termômetro.
— O portal funcionou como um espelho dos pontos mais controvertidos do debate pedagógico. Tenho usado o material das contribuições, a sensação é a de conversar com milhares de pessoas de todos lugares do país.
BRINCADEIRAS EM OUTRA ETAPA
Para além da educação infantil, os anos iniciais do ensino fundamental também precisam ser olhados de perto. A professora Hilda Micarello, coordenadora da equipe de redação da BNCC, cita como exemplo o debate sobre a brincadeira, elemento central da educação infantil e que praticamente desaparece na etapa seguinte.
— Há um debate sobre a brincadeira, uma discussão de que esse aspecto não desapareça a partir dos 6 anos. Vamos procurar deixar mais explícita essa dimensão lúdica, que caracteriza o contato das crianças com os diferentes componentes curriculares nos anos iniciais do ensino fundamental — explica.
Para Hilda, no entanto, apesar da importância do documento, é preciso ter em mente que a Base por si só não irá resolver todos os problemas da educação:
— A Base sozinha não terá o poder de trazer mudanças radicais à educação brasileira, precisa estar articulada a outras políticas públicas. Ela é fundamental porque dá um norte para que se possa atacar de forma mais efetiva esses problemas históricos, como a reprovação no 3° ano do ensino fundamental.
Nesse sentido, o secretário de Educação Básica do MEC ressalta que o próximo passo deve ir para além da BNCC.
— A formação de professores terá que ser revista tendo a Base como referência. Teremos que rever as matrizes de prova Brasil e do Enem, para que se alinhem com o documento — avalia. — Aprovada a Base, vamos começar a ver seus efeitos, como a revisão dos currículos dos estados e municípios. É provável que o impacto na produção do livro didático seja claramente perceptível em 2020. Em 2018 já se pode prever um Enem que tenha por referência a Base — afirma Palacios.