Assim é a aula da professora Maria da Paz, de MG, uma das vencedoras do prêmio Educador Nota 10, da Fundação Victor Civita
Pinturas, gravuras, desenhos e esculturas produzidos por crianças, misturadas a páginas de livros e fotografias decoram as paredes do antigo laboratório de ciências da Escola Municipal Valéria Junqueira Paduan, em Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais. Esse é o espaço de trabalho da professora de educação artística Maria da Paz Melo: uma sala de aula da imaginação e de fantasia ativa.
Nem um eco das aulas de arte tradicionais, pelas quais passaram gerações de alunos, com desenhos iguais para colorir, ilustrações para copiar ou lembrancinhas em série para o dia das mães. No verso de cartazes de filmes de uma locadora, em sobras de papel que uma gráfica iria jogar fora ou com sucatas de uma empresa recolhidas pela mãe de um aluno, as crianças fazem e desfazem, desenham, pintam, riscam, rasgam, saem das duas dimensões do papel. Usam todo tipo de material para criar arte contemporânea e , sem buscar a perfeição do desenho, expõem sua personalidade.
Poética pessoal
Alunos concentrados, pintando, acionando seu repertório interior para criar não o que veem, mas o que sentem. Quem acompanha as aulas vê uma demonstração do que o poeta Manoel de Barros disse: “Crianças em pleno uso da poesia funcionam sem apertar o botão”. No meio do processo criativo, com frequência Maria da Paz identifica nas obras que as crianças estão produzindo uma semelhança com um artista contemporâneo. Ela corre e busca um livro na biblioteca. “Está vendo aqui? Está bem parecido com o que esse artista faz”. E é assim com desenho, pintura, instalação, pintura no rosto. As crianças conhecem por livros e vídeos os artistas e suas obras como Mondrian, Matisse, Picasso, Paul Klee, Kandinski, Antoni Tapiès, e os brasileiros Nuno Ramos e Karin Lambrecht , mas apenas como referência. Não copiam, cada um busca encontrar sua resposta, sua solução criativa para a obra.
Do desenho fraco do homem-palito do primeiro dia de aula para o desenvolvimento de uma poética pessoal, o percurso de alguns alunos é surpreendente. As frases “não sei desenhar” ou “não consigo fazer” ficam para trás.
“Em alguns alunos é bastante visível a evolução das linhas do desenho, estão criando uma consciência estética. Ter um olhar diferente não é monopólio deles, tudo depende do direcionamento do professor, isso está em qualquer criança. Não ensinei ninguém a desenhar, é uma questão de autoestima, de acreditar que é capaz”, contou a professora. E isso é resultado de um processo continuado, feito a partir de uma sequência de exercícios para desenvolver a sensibilidade, habilidades e cultivar o olhar desde os primeiros anos.
A maioria é entusiasmada. Quando toca o sinal ou são chamados para a aula de arte, os alunos disparam pelos corredores. Mesmo quando não é a sua turma, pedem para entrar na sala, querem participar de todo jeito, segundo a diretora da escola Leila Vilela Mamud, que disse que também gosta de observar as aulas. “Eles estão desenvolvendo várias habilidades novas com essas atividades diferentes do cotidiano deles, a concentração, o aprendizado, a sensibilidade. Eles conseguem colocar a vida deles naqueles desenhos”.
O corpo como arte
Ao perceber que as crianças vinham se desenhando com carvão e pastel seco, a professora descobriu que a maioria sonhava com o dia em que poderia se tatuar. A partir daí, buscou imagens que mostrassem o quanto vários grupos humanos usam o corpo como suporte para o desenho, como fotos das tribos africanas do Rio Omo, feitas por Hans Silvester.
O dia em que a atividade é fazer do corpo o suporte da arte é concorrido. Com a tinta pastel, os alunos pintam o rosto, enfeitam os cabelos com flores e véus, pintam os dentes com anilina comestível e colocam capas de tecido colorido para correr pelo pátio, pelo pomar ou o bosque da ampla escola.
Mesmo tendo como referência os indígenas africanos e da Amazônia brasileira, as pinturas que fazem são muito próprias, um espetáculo raro que surpreende quem vê. Como bichinhos curiosamente coloridos, fazem piruetas, giram, posam para fotografias, percebem que são, elas próprias, obras de arte.
“Vou levar meu diário, vai que vejo uma coisa que me interesse”, diz Richard Daniel Marques dos Santos, de 9 anos, aluno do 4º ano, que a professora considera ter passado por uma “experiência estética”. Depois de ter visto uma fotografia de uma obra de Tapiès, teve um surto criativo e segundo ela está desenvolvendo uma poética pessoal verdadeira. Ele mantém um diário com seus desenhos. “Quando faço arte, me inspiro. Vem uma coisa na cabeça e eu crio”, contou ele. Para Jonathan Henrique Felício Balestra, também de 9 anos, a arte tem um efeito mais explosivo: “Parece uma coisa louca explodindo na nossa cabeça, até que vem a ideia”.
O semestre teve como ponto máximo uma visita em julho ao MAC (Museu de Arte Contemporânea de São Paulo). Madrugando para pegar a estrada, muitas das 23 crianças nunca haviam viajado e pouco saíam da “roça”. Quando passaram pelas obras expostas, reconheceram alguns artistas, como Sergio Romagnolo, Tapiès e Kandinski.
Maria da Paz quer montar um portfólio dos alunos, expor na cidade e também dar aulas para professores, com a intenção de estimular um ensino com mais criatividade e sensibilidade, influenciando o que as crianças forem fazer em várias áreas da vida: estudos, trabalho, relações com os outros. “Muita gente pesquisa sobre criatividade, mas ninguém tem a resposta”, ponderou. Uma aproximação de resposta talvez esteja naquilo que Jorge Mautner viu: “Beleza são coisas acesas por dentro”. Beleza que acende as crianças livres, inventivas, naturais, de Santa Rita do Sapucaí.