Imagine que sua capacidade de quantificar as coisas não existe: como se seis laranjas pudessem simplesmente ser nove ou 15. Quem tem discalculia enfrenta esse descompasso entre o número e a percepção de quantidade. Estudantes com a disfunção – que altera a habilidade de resolver cálculos matemáticos – lutam para se entender e criar métodos para lidar com os números. E ainda sofrem com o preconceito dentro de sala de aula e com a falta de preparo da maioria das escolas brasileiras.
“Não se alfabetizar depois de certo tempo é facilmente notável. Mas não saber matemática é algo, digamos, comum, dentro da escola. Por isso, muitas vezes, a discalculia acaba passando despercebida”, analisa a neuropsicóloga da Universidade de São Paulo, Sylvie Moschetto. Com a estudante Anna Cristina Kohn Anti, de Campinas (SP), foi um pouco diferente. Hoje com 14 anos e no 1º ano do ensino médio, ela, que também tem dislexia – distúrbio relacionado à linguagem -, teve sempre o acompanhamento dos pais, que perceberam a disfunção desde cedo. “Ela entrou na escola aos quatro meses. Na educação infantil, Anna lia muito, se mostrava tão esperta, tão inteligente. No papel, acabou se perdendo, achamos muito estranho”, explica a mãe da estudante, Claudia Maria Kohn Gonçalves Anti.
Apesar do diagnóstico precoce, Anna foi perceber as complicações somente no período que, segundo a neuropsicóloga Sylvie, é comum às outras crianças que possuem discalculia: quando a matemática começa a se tornar mais abstrata. “Senti os efeitos no final do ensino fundamental. As equações matemáticas eram complicadas, olhava aquelas expressões ‘X+3 = 5’ e gritava ‘como assim português e matemática juntos?'”, lembra Anna.
O trabalho para perceber a discalculia é longo e demanda muita atenção, já que no País não há testes formais para identificar a disfunção. Mesmo assim, Sylvie indica alguns sintomas que devem ser acompanhados por pedagogos, professores e pais, para diagnosticar o problema nos jovens. “Em sala de aula, o discalcúlico tem dificuldade com noção de tempo, de grandeza; demora para aprender a contar e a sequenciar números. Também se complica na hora de memorizar regra de jogos, não monta boas estratégias, tem dificuldade para lidar com dinheiro. É muito difícil que faça cálculos mentais ou decore tabuadas”, diz.
Depois de diagnosticar a doença, o acompanhamento de pedagogos e neuropsicólogos e uma avaliação cuidadosa da escola são necessários, segundo a professora de matemática e especialista na disfunção Cristina Cuoco Marques. “Novos métodos de ensino devem ser criados, sempre priorizando o concreto, a apresentação de objetos para simbolizar os cálculos, representar os números. Dependendo do caso, quando chega na fase mais abstrata da matemática, a possibilidade de uma revisão do cronograma curricular deve ser discutida”, diz.
Além de primar pelos cálculos concretos, os portadores de discalculia acabam criando o que se chama de “estratégias compensatórias”. “Não é uma receita, mas normalmente os números são comparados por meio das funções cognitivas que estão preservadas, como a noção de cores, formas. Cada número equivale a uma cor, por exemplo”, explica a neuropsicóloga Sylvie. Apresentar sintomas de discalculia e dislexia não faz de Anna um caso raro, pelo contrário. A presença das duas disfunções juntas é muito comum. Segundo a professora Cristina, o “mal dos números” nunca vem sozinho. “Acaba sempre sendo em nível de comodidade com outras disfunções, como a dislexia e a hiperatividade”.
A ausência de testes e o despreparo de professores e pedagogos faz com que o diagnóstico da discalculia ainda seja precário no Brasil. Segundo a doutora Sylvie, estudos estimam que de 5% a 7% das crianças brasileiras possuam a disfunção. Essa falta de normatização do diagnóstico acaba fazendo com que muitos professores não acreditem em laudos médicos e nas dificuldades de seus alunos. Por ter facilidade no restante das disciplinas e encontrar problemas somente em matemática e português – causados pela discalculia e pela dislexia, respectivamente -, Anna já foi chamada, segundo sua mãe, de “sem-vergonha” por um professor de sua antiga escola.
E os problemas não se restringiram a isso. Na hora de matricular a filha no Ensino Médio, muitas escolas fecharam as portas. “Alguns diretores diziam que não tinham condições de matricular minha filha, que a escola não estava preparada”, conta Claudia. No ensino médio, a estudante, que lida muito bem com a disfunção, é colega de disléxicos, pessoas com Síndrome de Down e autistas. Embora seus amigos tenham ido estudar em outra instituição, Anna celebra o lugar que a acolheu. “Muitas escolas não me aceitaram, diziam que eu precisava de tutor para aprender. Preciso de um pouco mais de paciência, somente”.
No futuro, Anna quer estudar Medicina Veterinária ou partir para a área da biologia. “Nada que esteja muito ligado aos números”, brinca, aos risos. Independentemente da área em que atue, sabe que terá o apoio dos pais. “Devemos acreditar. Ela apenas tem uma dificuldade e, como toda a dificuldade, é dever dos pais apoiar”, afirma Claudia.
A educação é cheia de desfios.
Problemas cada vez mais recorrentes.