Docência virtual

01/02/2013 – Revista Giz – Educação, trabalho & Cultura 

Muito se fala sobre o impacto que as novas ferramentas tecnológicas vêm exercendo no ambiente escolar e das várias possibilidades para o processo de ensino e aprendizagem que elas proporcionam. Internet, tablets,smartphones, redes sociais, conexão. Esses são termos que, além de bem conhecidos, estão bem presentes no cotidiano de quem trabalha com educação hoje.

Quase sempre o tom dos debates é de otimismo exacerbado, como se a tecnologia tivesse a “capacidade infinita” de resolver os problemas educacionais. E essa perspectiva vem afetando diretamente o ofício dos professores. Novas tarefas, novos desafios que ampliam as possibilidades, mas também que geram nova carga de trabalho.

“As tecnologias digitais criaram possibilidades comunicacionais e de democratização do conhecimento essenciais ao processo educacional”, enfatiza Daniel Mill, professor da UFSCar e pesquisador na área de EaD. Mas ressalva: “Na educação, as tecnologias digitais de informação e comunicação estão possibilitando a extração de mais-valias absoluta, relativa e extraordinária pelo simples fato de conseguir fazer mais em menos tempo”.

Mill é autor do livro Docênica Virtual – Uma Visão Crítica (Papirus Editora), que traz uma rica análise sobre as mudanças ocorridas ofício dos professores, com a incorporação das novas tecnologias, já tendo como perspectiva a mudança na legislação trabalhista (artigo 6º da CLT) que passou a reconhecer a equidade do teletrabalho e o trabalho tradicional.

Revista Giz conversou com o Prof. Mill, por e-mail, e o resultado pode ser conferido na entrevista que segue. ►

 

Revista GIZ – Gostaríamos de começar com uma ponderação. Observa-se que hoje o discurso tecnológico ecoa de maneira muito forte na sociedade, que a tecnologia teria um papel fundamental para uma educação de qualidade e que as tecnologias digitais teriam a “capacidade infinita” de resolver os problemas educacionais, como você cita em seu livro. Como você avalia essa situação?

Prof. Daniel Mill – Bom, de fato o discurso tecnológico vigente na atualidade induz a pensar nessa capacidade salvacionista. Toda emergência de uma nova tecnologia traz consigo essas novas promessas mágicas de solução a problemas históricos. Considero importante ter isso em mente porque essa noção de tratar-se de um discurso e não de um fato me abre a possibilidade de buscar alternativas à promessa salvacionista. Nesse campo de estudos, fala-se em tecnófobos/apocalípticos ou tecnófilos/integrados, em que as pessoas resistem veementemente ao uso das tecnologias ou atribuem às mesmas a solução última para as dificuldadesem geral. Entendoque os extremos são inadequados (ou burros, como dizem), pois há em toda tecnologia ricas possibilidades de auxílio à melhoria das condições de vida do ser humano. Afinal, elas foram desenvolvidas para isso: toda tecnologia é desenvolvida pelo e para o (bem ou mal do) ser humano. O cuidado necessário é analisar em que medidas determinado uso é favorável ou contrário aos interesses da população. No caso das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC), vale observar que trazem diversos benefícios e desvantagens às pessoas, incluindo-se aí os docentes. Assim, as mágicas promessas ou “capacidade infinita” dessas tecnologias deixam de ser tão mágicas quando analisamos cuidadosamente o emprego que queremos dar a esta ou aquela tecnologia. Enfim, que uso é mais adequado para as tecnologias digitais?

Em linhas gerais, de que forma a tecnologia têm força na educação?

Há um princípio básico, geralmente ignorado por muita gente: não existe proposta educacional em todo o mundo que não adote alguma tecnologia. A linguagem falada ou escrita, algum material didático ou outra fonte de informação serão sempre necessários para que o educador se prepare profissionalmente e prepare suas aulas. A execução de uma aula envolve, necessariamente, uso de tecnologias. Assim, a maior ou menor força que a tecnologia ganha numa proposta educacional vai depender dos realizadores da formação. Como as tecnologias não são neutras, carregam a carga ideológica e os interesses do grupo que a adota e impõem, as propostas mais recentes de educação estão dando demasiado poder ou ênfase às tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC). Vale lembrar que a falha não é adotar as TDIC e sim a forma como são adotadas.

Como você definiria a docência virtual?

Docência virtual é o trabalho pedagógico realizado por educadores que acompanham estudantes por meio de tecnologias digitais de informação e comunicação. Geralmente, o docente virtual é também conhecido como tutor virtual ou professor-formador.

As novas tecnologias digitais vêm provocando, de fato, uma mudança no papel tradicional do professor?

Sim, as chamadas TDIC ou tecnologias digitais de informação e comunicação afetaram o papel do professor em todo o mundo. Elas influenciam praticamente todas as atividades humanas, incluindo o setor educacional. O papel e o trabalho do professor da educação presencial e da Educação a Distância passaram por uma significativa transformação nos últimos anos porque mudou o perfil do estudante, mudaram as formas de ensinar, mudaram as possibilidades e estratégias comunicacionais e, por conseguinte, muda também o trabalho docente em sentido amplo ou restrito. O professor deixa de ser detentor do conhecimento e passa a orientador da aprendizagem.

Na sua avaliação, quais seriam benefícios trazidos pelas novas tecnologias, ou tecnologias digitais de informação e comunicação, para o trabalho do professor?

As tecnologias digitais criaram possibilidades comunicacionais e de democratização do conhecimento essenciais ao processo educacional. No limite, por exemplo, elas redimensionaram os espaços e tempos de ensinar e de aprender, gerando uma grande capacidade para atendimento mais adequado aos diferentes perfis e estilos de aprendizagem dos estudantes. Pela flexibilidade pedagógica e curricular, pela personalização dos horários e lugares de ensinar e aprender, pelas oportunidades dadas a quem reside distante dos grandes centros de formação e por outras tantas mudanças decorrentes da incorporação das TDIC na educação, podemos dizer que são inúmeros os benefícios dessas tecnologias digitais. A possibilidade de fazer pesquisa sobre seus conteúdos, de compartilhar suas estratégias e dificuldades ou acessar bases de dados atualizadas são alguns exemplos de vantagens ao docente. Pelo uso das TDIC, o trabalho do professor fica mais produtivo, rico, fácil e dinâmico. Todavia, como mencionamos acima, é preciso cautela na sua incorporação.

E quais seriam os pontos negativos das TDIC para o trabalho dos professores?

As tecnologias em geral, em si mesmas, não trazem desvantagens ao ser humano. O complicador está na forma como são empregadas pelas pessoas e por determinados grupos de interesse. Por exemplo, os ambientes virtuais de aprendizagem possibilitam formas de controle do trabalho docente mais intenso (mesmo o professor não estando presentes na instituição) do que as tradicionais formas de vigilância. Outro exemplo, as TDIC fomentam alguns males (adoecimento) diferentes e novos: problemas na visão ou de postura, dores lombares ou nos tendões são apenas algumas novas possibilidades de desvantagens das tecnologias digitais para o docente.

Daniel Mill participou do 1º Simpósio Conexão Fepesp. Promovido em parceria com o SINPRO-SP, o evento, destinado aos professores do SESI, discutiu o impacto das novas tecnologias no trabalho docente

Considerando que nenhuma legislação brasileira tratava especificamente do teletrabalho, é um avanço significativo essa mudança na CLT. Todavia, a alteração do seu Art.6º é ainda insuficiente para a regulamentação do trabalho docente. O teletrabalho seduz trabalhadores e gestores (e de fato traz inúmeros benefícios), mas traz implicações por vezes perversas ao trabalhador. Deixar essa situação por conta da dinâmica do mercado de trabalho significa aumento da precarização e das condições desfavoráveis ao trabalhador. Acredito que a mudança na legislação trabalhista precisa ainda regulamentar, especificamente o trabalho virtual em geral e o trabalho pedagógico virtualem particular. Nessesentido, ações dos próprios trabalhadores e das instâncias representativas são essenciais e salutares. Enfim, de todo modo, é inegável o grande avanço desta pequena mudança na CLT, ocorrida no final de 2011.

É possível afirmar que com as novas ferramentas tecnológicas, com as novas possibilidades de ensino e aprendizagem, os professores têm tido mais trabalho do que há 10 ou 20 anos? 

Sim. Com mais tecnologias ou tecnologias mais avançadas, todo ser humano trabalha mais em menos tempo. Isto é, as tecnologias digitais estimulam a maior produtividade. Na educação, por exemplo, as TDIC estão possibilitando a extração de mais-valias absoluta, relativa e extraordinária pelo simples fato de conseguir fazer mais em menos tempo. Vale destacar que, nessa sociedade contemporânea marcada pelas tecnologias digitais, há outras decorrências desse processo: professores levam mais trabalho para casa, o que significa trabalhar mais e despesas com energia elétrica, equipamentos e conexão por conta do trabalhador; necessidade de busca incessante por formação e melhoria das competências profissionais; uso de tempos de reprodução (descanso) para produção (trabalho); confusão dos limites de lugar e horários de trabalho e lazer… além de outras consequências da dobra dos tempos possibilitadas pelas TDIC.

Os professores acabam de definir a pauta de reivindicações para a campanha salarial 2013. Um dos itens da pauta é justamente a regulamentação do trabalho virtual dos professores e a devida remuneração do trabalho desenvolvido a partir das plataformas digitais. Como você avalia tal demanda?

Avalio como essencial, justa e necessária. Se não está na pauta, o fato passa despercebido e as consequências negativas são (quase) sempre para o trabalhador. Claro que há um grande intervalo entre entrar na pauta e a regulamentação efetiva, mas é esse o primeiro passo para uma caminhada em direção a melhores condições de trabalho virtual. Parabéns ao grupo que fomentou esse processo de reivindicação relacionado aos trabalhadores virtuais ― que ao meu ver ainda estão quase abandonados pelas diversas instâncias representativas do trabalho pedagógico.

Como os professores podem lidar com os desafios da docência virtual?

Quero entender que a docência virtual é um tipo particular de docência, mas ainda docência. Seus tempos e lugares de ensinar e aprender são redimensionados e as tecnologias de mediação pedagógicas são outras, mas em essência as funções de um docente permanecem as mesmas. Assim, todas as estratégias estabelecidas para a docência presencial ou outras configurações possíveis são também válidas para a docência virtual. Particularmente, vejo com bons olhos a docência virtual e não a considero mais difícil do que a docência presencial. É mais trabalhosa, complexa e dinâmica, claro, mas não precisa ser tratada como mais difícil. Um bom educador da educação tradicional será, provavelmente, um bom educador da educação virtual. Eu destacaria, entre os muitos desafios da docência na atualidade (não só da docência virtual), o desafio de conseguir uma boa organização de horários e lugares para trabalhar. Por ter liberdade de organização dos próprios tempos e espaços de trabalho, geralmente há confusão por parte do trabalhador e, via de regra, prejudica sua vida privada, familiar, social e lazer. É um desafio e merece atenção… e existem alguns outros!!

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