Nilson José Machado – Especial para a UOL – 08/06/15
O Exame Nacional do Ensino Médio foi criado em 1998 como uma iniciativa louvável: avaliar a formação dos alunos ao final da educação básica, para inspirar políticas públicas de melhoria de tal nível de ensino.
Do ponto de vista político, a universalização de uma educação básica de qualidade é condição de possibilidade da vigência de uma democracia. O alerta de Dewey, em seu seminal Democracia e Educação (1916), ainda ecoa incisivo: não é possível a um país contentar-se com apenas um dos termos de tal par, o que seria tão eficaz quanto aliviar de uma pena de morte alguém condenado a duas de tais penas.
Modernamente, uma enorme fragmentação disciplinar instalou-se nos currículos, tornando o ensino médio, etapa final da educação básica, especialmente problemático. Eivadas de pormenores, as disciplinas minam o significado dos temas tratados, que parecem atraentes apenas a especialistas. Perdeu-se o foco nas ideias fundamentais de cada matéria.
Nossos avós diziam com singeleza que as matérias estudadas eram os meios, para que saíssemos da escola sabendo “ler, escrever e contar”. Hoje, tal tríade não parece mais dar conta dos fins da escolarização, abrindo-se espaço para uma multiplicação no número de disciplinas estudadas, transformadas, algumas vezes, em fins em si mesmas.
Foi para reavivar a ideia das disciplinas como meios para o desenvolvimento de competências pessoais que surgiu o Enem. Em sua concepção, tal exame atualizou as expectativas de nossos avós, ao propor que, ao final da educação básica, todos deveriam demonstrar capacidade de expressão de si e de compreensão do outro; de argumentação analítica e de tomadas de decisão; de enfrentar situações-problema em diferentes contextos, mas também de dar asas à imaginação e extrapolar a realidade imediata.
Reiteramos que o exame representava uma tentativa de diagnosticar a educação básica no país, visando a ações de melhoria especialmente do ensino médio.
Hoje, o Enem encontra-se multiplamente descaracterizado: ele abandonou sua função de diagnóstico e se transformou em um medíocre processo seletivo para o ensino superior. Quando surgiu, o Enem teve uma pequena influência nos vestibulares: não é um exagero afirmar-se que os vestibulares, agora, o engoliram. Não se trata de um pequeno desvio.
A arquitetura do Enem é a de uma peneira grossa e não o credencia como um processo seletivo. Suas questões não têm o poder de discriminação fino que tais exames exigem. No máximo, seu resultado poderia ser usado como um escore cognitivo, em sintonia com indicadores mais específicos, incluindo-se as entrevistas.
A prova de redação é um bom indicador do desvio do Enem. A fecunda tecnologia criada para a correção das provas teve sua importância diminuída ou mesmo esvaziada. No aproveitamento das notas do exame, muitas vezes, tudo o que se exige é que não se tenha um zero na redação.
Na busca de uma consistência como processo seletivo, o Enem foi conduzido a outro desvio: a prevalência da intenção da medida sobre a de fornecedora de indícios para a formulação de políticas públicas, o que conduziu o exame aos braços da TRI (Teoria da Resposta ao Item), uma tecnologia cara e sofisticada, que serviria a um putativo rigor mas torna os resultados de difícil interpretação enquanto diagnóstico.
Longe do Ensino Médio
Outro desvio grave de função ocorre quando se usa o Enem para a construção de rankings das escolas. A divulgação dos resultados do exame tem constituído, anualmente, um espetáculo de puro nonsense.
Apenas para exemplificar, em 2009, quando a contagem dos pontos era de 0 a 100, 70 escolas tiveram resultados entre 64 e 65 pontos; em 2010, quando o número de pontos foi estendido para 1000, as 50 supostas melhores escolas tiveram notas entre 749 e 701, com diferenças absolutamente irrelevantes entre elas.
Se a produção de um ranking é inevitável, então que se crie um ordenando as escolas em 4 ou 5 faixas, de modo similar ao da atribuição de estrelas aos hotéis: não é possível ir-se além disso com tal instrumento.
Ao mimetizar processos seletivos, desvalorizar a prova de redação e referendar o absurdo dos rankings tal como são realizados, o Enem está, hoje, completamente descaracterizado. Ao abandonar seu estatuto de instrumento para orientar as ações de melhoria da educação básica, sobretudo em seu nível mais crítico, que é o ensino médio, e se instalar como instrumento de ingresso no ensino superior, o Enem frustra todas as expectativas de sua criação.
Ao relacionar-se mais com vagas ou financiamento da educação superior, com Fies ou Prouni, do que com o ensino médio, o Enem, que nasceu para ser uma geladeira, transforma-se em discreto aquecedor a secar sapatos, em sua parte traseira.
NÍLSON JOSÉ MACHADO
67 anos, é professor titular da Faculdade de Educação da USP