Revista Profissão Mestre – Kelen Trevisan – 07/03/2013
Para o educador português José Pacheco, é preciso abandonar estereótipos e preconceitos para que as escolas se transformem em um lugar onde todos tenham a oportunidade “de ser e de aprender”. Ele é mestre em Ciências da Educação, professor, autor de diversos livros da área, mas ficou mundialmente conhecido por ser o idealizador da Escola da Ponte – localizada na Cidade do Porto, em Portugal –, uma instituição consagrada por um projeto educativo inovador, baseado na autonomia dos estudantes. Nesta entrevista exclusiva à Profissão Mestre, José Pacheco aborda as principais deficiências do ensino público brasileiro e suas “possíveis” soluções, fala sobre os benefícios de projetos inovadores – como o da Escola da Ponte – e suas consequências para a sociedade.
Profissão Mestre: Em sua opinião, quais são as principais deficiências do ensino público brasileiro? De que forma essas deficiências poderiam ser contornadas?
José Pacheco: Não creio que um português possa elencar todas as “deficiências” [da educação brasileira]. Elas são múltiplas e complexas. Mas, atrever-me-ei a fazê-lo, referindo-me a uma delas:a manutenção de uma alfabetização quase toda pautada em arremedos de um construtivismo mal interpretado e, sobretudo, no chamado “método fônico”. Sendo um entre muitos modos de ensinar a ler e a escrever, é hegemônico e causa direta do analfabetismo funcional de que sofrem 24 milhões de brasileiros. Essa situação poderia ser mitigada se fossem constituídas, em cada escola, equipes de especialistas em alfabetização. E, se fosse propiciado a cada aluno o modo – ou modos – como cada qual pode aprender a ler. Em equipe de professores, não em sala de aula, com professor solitário pretendendo ensinar a todos do mesmo modo, no mesmo tempo, no pressuposto de que se pode ensinar a todos como se de um só se tratasse.
Profissão Mestre: Como o senhor avalia o processo de ensino-aprendizagem praticado há anos na rede pública regular? Como deveria ser? O que deveria mudar?
José Pacheco: Não sei como deveria ser, mas sei que muito terá de mudar nas escolas. Todas elas dispõem de um projeto político-pedagógico (PPP) que lhes outorga o direito, e a missão, de educar. Porém, os PPP são apenas políticos e pedagógicos na redação. Se uma escola escreve no seu PPP a intenção de fazer dos seus alunos cidadãos autônomos – e todas o fazem –, como poderá, por exemplo, lograr atingir esse objetivo “dando aula”? Será possível desenvolver autonomia nos alunos “dando aula”? Se um professor não é autônomo… Todo o ato educacional é político. E um ato político nunca é neutro. As práticas escolares, desde há mais de um século, adotadas pela maioria das escolas são fonte de insucesso, por se presumirem apolíticas. Ingenuamente se continua preparando para a cidadania, nunca conseguindo atingir esse objetivo, porque não “se prepara para”, mas “se educa com”. Não adianta instalar mais câmeras de vigilância, mais catracas, ou expulsar alunos, para combater a indisciplina. Esses paliativos – que, não agindo nas causas, perenizam as consequências – são instrumentos de exclusão. Aquilo que resolve o problema da indisciplina, como do insucesso, é um trabalho que assegura excelência acadêmica com inclusão social. E isso somente se conseguirá com outro tipo de organização da escola e do trabalho escolar.
São evidentes os graves efeitos do predomínio de uma cultura assente no individualismo, na competição desenfreada, na ausência de trabalho em equipe. É exatamente isso que precisa ser mudado. Com estudo. Com responsabilidade. Sem adoção de modas pedagógicas.
Profissão Mestre: Qual é a sensação ao saber que, anos depois de o senhor ter idealizado a Escola da Ponte, outras escolas brasileiras se inspiram nesse projeto educativo inovador para superar seus problemas?
José Pacheco: Aquelas que se inspiraram na Ponte para melhorar as suas práticas serão bem mais do que cerca de uma centena, que conheço diretamente. Do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, os educadores brasileiros provam, na prática (refletida…) ser possível erradicar o analfabetismo, a ignorância, a exclusão. Fazem-no discretamente, sem alarde e sem apoio. Suspeito que o MEC ande distraído. E que ainda há secretarias de Educação que ignoram a importância de projetos em curso nos seus municípios.
Profissão Mestre: Epor que o governo não tem interesse em divulgar esses projetos inovadores?
José Pacheco: Eu não diria que o governo não tem interesse em divulgar esses projetos inovadores. Diria que os desconhece. E que insiste em políticas públicas geradoras de desperdício. Veja a gestão burocratizada, o predomínio de decisões de natureza administrativa, que configuram o cotidiano das escolas. Uma pesquisa recente nos diz que 90% dos diretores de escola gastam mais tempo a tratar da merenda escolar do que de assuntos de natureza pedagógica. Isso não será significativo? Por que razão se subsidia práticas desprovidas de fundamentação científica? Qual será o fundamento pedagógico das práticas ainda hoje hegemônicas? Por que não se acompanham e avaliam práticas “divergentes”?
Profissão Mestre: Pelo mundo afora, há outras escolas que também se inspiraram na Escola da Ponte. Como o senhor acompanha esse processo?
José Pacheco: Em Portugal e em vários países, são muitas as escolas onde professores tentam melhorar, e melhorar a vida dos seus alunos. Inspirados na Escola da Ponte, e em outros projetos, acreditam ser possível fazer dos jovens seres mais sábios e pessoas mais felizes. E agem em coerência com aquilo em que acreditam. Peço que me seja perdoado o fato de não as divulgar [as escolas]. Precisaria obter a sua autorização. E também por saber que a visibilidade pública age, frequentemente, contra os projetos inovadores. Eles perturbam o instituído.
Profissão Mestre: Quais são os principais benefícios de um projeto como esse?
José Pacheco: Talvez a concretização de uma educação integral, em uma escola integrada, em tempo integral. E, também, os excelentes efeitos alcançados, tanto no domínio cognitivo quanto no atitudinal. Os estudos estão aí, para provar. Freire disse que não é possível refazer este País, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. E Agostinho da Silva acrescentou: “temos de reorganizar todo o sistema educacional, de maneira que para o aluno brasileiro haja mais esforço no sentido de descobrir a realidade do que ela ser comunicada por um professor. Se ouvíssemos o estudante, talvez este viesse com o espírito de descobrimento do século XIV e com o espírito que foi criativo em Canudos”. Escutemo-los.
Profissão Mestre: E de que forma, na prática, isso poderia ser feito pelos educadores?
José Pacheco: Um projeto educacional é um projeto de sociedade. E o Brasil carece de projetos que concretizem a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) do sábio Darcy [Ribeiro]. Urge viabilizar projetos, nos quais a fraternidade, a criatividade e o empreendedorismo sejam incentivados. Urge por ponto final na mesmice, que caracteriza o modelo escolar herdado do iluminismo e que se mantém tributário de necessidades sociais da revolução industrial do século XIX. É preciso desenvolver práticas educacionais que a todos permitam aprender tudo. Eu sei que isso é possível. Gostaria de verificar rigor no ensinar e no aprender, porque admitir que uma parcela dos jovens escolarizados possam não aprender, que possam ser reprovados, é criminoso.
Profissão Mestre: Quais são as principais dificuldades a serem enfrentadas dentro de um ambiente escolar com um projeto como esse?
José Pacheco: Sempre que me dirigem essa pergunta, respondo que o maior obstáculo sou “eu”. É a cultura pessoal e profissional de cada professor, uma cultura feita de solidão e autossuficiência. Quando essa cultura se reelabora, a maior dificuldade é dissipada.
Profissão Mestre: E como seria possível transformar essa “cultura pessoal e profissional de cada professor, uma cultura feita de solidão e autossuficiência”?
José Pacheco: Talvez a cultura pessoal e profissional dos professores possa ser reelaborada, se eliminarmos erros do modelo de formação, inicial e continuada, que as faculdades alimentam e as secretarias patrocinam. A formação de profissionais de desenvolvimento humano merece maior atenção e carece de profundas mudanças. Nomeadamente, por meio do reconhecimento de que a teoria não precede a prática e de que o modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina. Outras “dicas” poderão ser observadas em escolas onde a mudança acontece. São muitas. Estão aí…
Profissão Mestre: Após anos trabalhando na Escola da Ponte, o senhor deve ter se deparado com diversas histórias de superação. O que mais o marcou nessa trajetória?
José Pacheco: As escolas carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver, porque os projetos humanos contemporâneos não se coadunam com as práticas escolares que ainda temos. Requerem que abandonemos estereótipos e preconceitos, exigem que se transforme uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender. E essa transformação acontece. Não vou me referir a uma história em particular porque seria injusto para com todos aqueles educadores, que acompanho e com quem muito aprendo. Mas poderei dizer que há muitos professores que dão sentido às suas vidas dando sentido à vida das crianças e das escolas. Sinto-me um privilegiado por encontrar tanta generosidade e responsável ousadia, neste Brasil, que, por intermédio de muitos exemplos de superação, bem como pela educação, alcançará a cidadania plena.
Profissão Mestre: Explique-nos o porquê da autodefinição de “um louco com noções de prática”.
José Pacheco: São desperdiçados, anualmente, 56 bilhões de reais por má gestão do dinheiro público investido na Educação do Brasil. As causas são corrupção, burocracia, escolhas políticas equivocadas, má gestão. A escola mantém-se conivente com o estímulo da competitividade, fomenta o imediatismo e a frivolidade. Reifica o virtual, a transitoriedade. Colhemos aquilo que semeamos. Desde há mais de dois séculos, desenvolvemos e alimentamos um sistema educacional reprodutor de absurdos, produtor de múltiplas formas de ignorância e reprodutor de desigualdades sociais. Quem ousa questionar e mudar essa situação (numa prática teorizada), provando a possibilidade de uma escola que garanta excelência acadêmica e inclusão social, é taxado de… louco.
Profissão Mestre: O senhor é autor do livro Caminhos para a inclusão:um guia para o aprimoramento da equipe escolar. Qual é a sua opinião sobre a educação inclusiva no Brasil?
José Pacheco: Publiquei esse livro nos anos de 1990. E pouco, ou mesmo nada, mudou desde então. Infelizmente, apenas se substitui o quadro-negro pela lousa digital. Mudou o léxico, porque se fala insistentemente de inclusão. Apenas se fala, porque a palavra inclusão continua apenas a servir para enfeitar teses. Talvez por essa razão, a “educação de adultos” acontece como inevitável sucedâneo de um obsoleto modelo de ensino, com ênfase num frontal anônimo – a aula –, que pode ser evitado, se o permutarmos por situações de frontalidade fundamentadas. Talvez por isso, as classes de apoio, de recuperação, de reforço, instituam-se como aberrações decorrentes do modelo de escola ainda predominante. A escola que, majoritariamente, ainda temos, constitui-se um obstáculo ao desenvolvimento humano. Mas poderão constituir-se em locus de humanização e oportunidade de inclusão. O meu livro foi um pequeno contributo para a mudança.