Gizmodo Brasil – Por: Felipe Ventura – 26 de março de 2015
Nós nos interessamos bastante por educação, seja para divulgar iniciativas como aulas em português no Coursera e Khan Academy, seja para discutir temas mais polêmicos como os salários de professores na USP.
Por isso, ficamos encantados ao nos deparar com a manchete “Finlândia será o primeiro país do mundo a abolir a divisão do conteúdo escolar em matérias”. É a interdisciplinaridade levada na prática às últimas consequências! Isso levanta todo tipo de questão: por exemplo, como isso poderia ser aplicado – mesmo que em parte – no Brasil.
Isso também pareceu bom demais para ser verdade – porque, bem, é mentira.
Em um artigo intitulado “O ensino por disciplinas nas escolas finlandesas não está sendo abolido“, o Conselho Nacional de Educação da Finlândia – responsável por toda a educação com financiamento público no país – explica:
A notícia de que a Finlândia vai abolir o ensino de matérias separadas chegou recentemente às manchetes em todo o mundo. O ensino por disciplinas não será abolido, mas o novo currículo para o ensino básico vai trazer algumas mudanças em 2016…
O novo currículo para o ensino básico, que será implementado nas escolas em agosto de 2016, contém algumas alterações que podem ter causado o mal-entendido. A fim de enfrentar os desafios do futuro, o foco está nas competências transversais (genéricas) e no trabalho entre disciplinas escolares… Os alunos devem participar cada ano em pelo menos um desses módulos de aprendizagem multidisciplinar.
Ou seja, as escolas de ensino fundamental vão ganhar pelo menos um projeto interdisciplinar, mas isso fará parte de um currículo tradicional: os alunos ainda terão aulas de finlandês, matemática, biologia, história, entre outros. Em outro texto recente, o Conselho afirma que “as disciplinas escolares ainda têm um papel importante no ensino e no aprendizado”.
A confusão
Como isso acabou se transformando em algo que “pode revolucionar a educação ocidental”, como diz uma manchete?
Tudo começou com uma reportagem do jornal britânico The Independent, que brada:
… a Finlândia está prestes a embarcar em um dos programas de reforma educacional mais radicais já realizados por um país – substituir o “ensino por disciplinas” tradicional em favor do “ensino por tópicos”.
Isso é uma forma exagerada de explicar a mudança. Enterrado no 21º parágrafo do texto, está o que o jornalista realmente quis dizer (grifo nosso):
As escolas finlandesas serão obrigadas a introduzir um período de “ensino baseado em fenômenos” pelo menos uma vez por ano. Esses projetos podem durar várias semanas. Em Helsinque, a reforma está sendo estimulada a um ritmo mais rápido, e as escolas são incentivadas a dedicar dois períodos durante o ano para a adoção da nova abordagem.
Ou seja, as escolas não jogarão fora as disciplinas, mas vão incorporar um – ou dois – projetos interdisciplinares de algumas semanas.
A hipérbole do Independent acabou confundindo todo mundo. No Brasil, a história falsa sobre “o fim das disciplinas” repercutiu no site Rescola, no Brasil Post e na Época Negócios. Claro que isso se espalhou como fogo em palha no Facebook.
O real exemplo da Finlândia
Dito isto, a mudança educacional na Finlândia pode ser exemplar. Isso significa que, em um país inteiro, haverá aulas interdisciplinares em todas as escolas públicas.
Segundo o Brasil Escola, a interdisciplinaridade surgiu no final do século XX para desfazer a fragmentação do conhecimento em tantas disciplinas que raramente conversam entre si.
Escolas no Brasil já testam projetos desse tipo há anos: por exemplo, o Colégio Santa Maria, de São Paulo, conseguiu em 2005 reunir conceitos de ciências, matemática, geografia e história para educar os alunos sobre riscos de apagão no Brasil, e sobre a necessidade de energias alternativas. (Vamos precisar disso de novo, viu?)
Uma reportagem da revista Nova Escola também cita experiências em Goiânia e em Ribeirão Pires (SP), e certamente há muitas outras espalhadas pelo Brasil. Na Finlândia, a diferença é que isso será um esforço obrigatório em todas as escolas do ensino fundamental – por mais que não substitua as disciplinas tradicionais.
Marjo Kyllonen, chefe educacional de Helsinque, se descreve como “especialista na escola do futuro” no Twitter, e diz ao Independent: “há escolas que ensinam à moda antiga, que foi proveitosa no início do século XX, mas as necessidades não são as mesmas e precisamos de algo apto para o século XXI”.
A Finlândia esta obviamente mais apta a testar ideias mais ousadas na educação: lá, os professores precisam ter mestrado para dar aula, mesmo no ensino fundamental; e os salários são altos, basicamente iguais ao que se pode obter dando aulas na universidade.
Os alunos da 1ª a 9ª séries têm aulas de arte, música, culinária e carpintaria, além das disciplinas tradicionais. Além disso, as turmas têm um tamanho máximo: “aulas de ciência são limitadas em 16 alunos, para que eles possam fazer laboratório em cada aula”, segundo o New Republic.
Ou seja, se quisermos seguir o exemplo da Finlândia, não adianta só abolir as disciplinas – aliás, nem eles vão fazer isso.