Para muitos observadores, o futuro da educação parece brilhante. Os cursos abertos on-line maciços vêm atraindo atenção especial nos EUA, graças a iniciativas empresariais como a Coursera e a Udacity e a empreitadas sem fins lucrativos como a edX (uma colaboração entre a Universidade Harvard e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts.)
Tais cursos parecem muito atraentes porque acrescentam grande volume de conteúdo bem produzido e profissional aos milhões de textos e vídeos do YouTube que já circulam on-line de maneira bastante caótica. Entusiasmam porque eliminam o risco de assistir a uma aula no YouTube e descobrir tarde demais que o responsável por ela é um charlatão descredenciado.
Mas focar no conteúdo seria desconsiderar o outro lado, da digitalização em curso no setor de educação formal. Afinal, não se trata apenas do conteúdo — a infraestrutura da educação também está mudando, e é nesse nível, em geral não visível, que os efeitos da digitalização são um pouco menos óbvios.
Um exemplo é uma empresa como a CourseSmart, líder inconteste na produção de livros e materiais didáticos em formato digital. Criada em 2007 por grandes editoras do segmento didático como a Pearson e a McGraw-Hill Education, a CourseSmart oferece mais de 20 mil livros didáticos em formato eletrônico (cerca de 90% dos títulos didáticos em catálogo na América do Norte). Os livros podem ser lidos em computadores, tablets e celulares inteligentes, em versões on-line e off-line. A empresa tem ambições mundiais e recentemente anunciou expansão para o Oriente Médio e o norte da África, com lançamento de conteúdo em países como o Zimbábue e a Arábia Saudita.
No começo de novembro, ela anunciou sua mais recente inovação: um sistema on-line de rastreamento chamado CourseSmart Analytics. Por vender livros didáticos digitais, a CourseSmart pode rastrear quanto tempo os alunos dedicam a cada página de um livro, que capítulos eles pulam, que trechos causam problemas de compreensão e assim por diante. Ao acumular e agregar essas informações, a companhia produz um “índice de envolvimento” para cada aluno. Que é em seguida comunicado ao professor. A nova versão do sistema incorporará um painel especial para o uso dos produtores de conteúdo, para que possam ver como os estudantes interagem com seus livros didáticos.
É cedo demais para determinar se essa ideia terá sucesso, mas três universidades dos Estados Unidos participarão do programa-piloto que determinará o resultado. Não é uma ideia inteiramente insensata — na realidade, é completamente racional. Afinal, isso pode ajudar os professores a identificar conteúdo complicado nos livros didáticos e permitir que as editoras descubram maneiras mais acessíveis de apresentar esse material.
Mas há algo de incômodo nessa ideia. Imagine uma aula de literatura na qual os alunos tenham a missão de ler sobre a criação do romance “1984”, de George Orwell, usando livros didáticos que os espionam enquanto leem. Ou uma aula de história na qual os livros didáticos “inteligentes” os informem sobre a história do aparato de vigilância da União Soviética.
Mesmo excluídas perversidades como essa, é preciso perguntar de que forma a existência de livros didáticos com recursos de vigilância, como os descritos, afetaria o desenvolvimento do pensamento crítico dos estudantes. Ser “crítico” também significa aprender a distinguir entre textos diferentes e, ocasionalmente, nadar contra a corrente intelectual dominante e recusar a leitura de textos compulsórios. Os alunos que se limitavam a fingir que estavam aprendendo eugenia no começo do século 20 –como os professores que apenas fingiam lecionar a matéria– talvez estivessem violando as normas disciplinares de suas escolas, mas não podem ser criticados por sua “falta de envolvimento”.
Nem todo mundo tem condição de ostentar independência e recusar a leitura de um livro didático insultuoso ou mesmo entediante; às vezes, a resistência é passiva e menos heroica. Livros didáticos que reportem os hábitos de leitura dos usuários não os forçarão magicamente a ler o conteúdo –a não ser que o movimento dos olhos do aluno seja monitorado pelo aparelho, o leitor continuará tendo o direito de virar páginas sem lê-las.
O fato de que os dados de uso serão computados para calcular um “índice de envolvimento” também pode ter efeitos adversos; alguns alunos talvez já conheçam a matéria e por isso não tenham a necessidade de ler todo o capítulo. Seu “índice de envolvimento” será previsivelmente baixo, mas não serviria como indicador de seu conhecimento real da matéria. Além disso, assim que “índices de envolvimento” vierem a ser incorporados aos esquemas de avaliação de aprendizado das escolas e das autoridades da educação, haveria forte incentivo para manipular o sistema –talvez convencendo os estudantes a folhear o material o maior número possível de vezes.
Isso resultaria em índice de envolvimento teoricamente mais elevado, mas nada nos diria, uma vez mais, sobre a qualidade da educação. Qualquer que seja o problema de nossas escolas hoje em dia, certamente não envolve uma falta de metas e objetivos quantificados.
Também é fácil imaginar que diversos governos –especialmente os do Zimbábue e da Arábia Saudita– desejem saber que trechos dos livros de história os alunos veem como especialmente interessantes ou especialmente chatos. Será que serão desenvolvidos painéis especiais de controle do conteúdo para esses governos, como para as editoras e os professores?
Mas mesmo nos países democráticos, é importante investigar o que acontece com todos os dados gerados pelos alunos: todos aqueles cliques, páginas viradas, trechos sublinhados. São dados que podem parecer triviais, mas, combinados a outros –como a lista de amigos de Facebook de um usuário ou um registro de suas buscas no Google–, há a chance de que ganhem grande valor para anunciantes e potenciais empregadores.
Quanto a isso, também, existe um grande risco de que os livros didáticos eletrônicos –ou melhor, a infraestrutura pela qual são providos– fomentem maior conformismo. Se existe uma chance de que seus hábitos de leitura venham um dia a ser refletidos em sua “ficha corrida” on-line –aquela que empregadores estudarão depois de entrevistá-lo para uma vaga–, é provável que os estudantes pensem duas vezes antes de ler algo subversivo ou deixar de ler algo convencional.
E isso não se aplica apenas a empresas como a CourseSmart, que cuidam apenas da porção da cadeia relacionada a livros eletrônicos; aplica-se, e até mais, a companhias como Apple e Amazon, fabricantes dos aparelhos nos quais os livros didáticos (muitas vezes vendidos por elas mesmas) serão acessados.
Essas grandes empresas de tecnologia além disso afetam não só o que os estudantes aprendem mas a forma pela qual o fazem. A Amazon, por exemplo, recentemente lançou uma nova plataforma chamada Whispercast, que permite que as escolas usem seu leitor eletrônico Kindle em classe, com certas funcionalidades limitadas ou desativadas. Com isso, as escolas podem bloquear o acesso a redes sociais ou a conexão com a internet. Ou desabilitar qualquer recurso do Kindle que considerem causador de distração.
Tudo isso pode se provar útil em curto prazo, mas parece que os estudantes –os supostos beneficiários da “era digital”– estão perdendo a batalha pelo poder contra os professores e dirigentes escolares. Os dias em que os alunos estavam autorizados a pesquisar o que quisessem em seus iPads –por exemplo, o significado de uma palavra ou dados sobre uma figura histórica– podem estar chegando ao fim.
Isso pode ajudar a resolver o problema da distração, mas também pode inibir o desenvolvimento de maneiras de aprender fortemente interativas e mistas. Estas, se usadas de maneira apropriada, poderiam satisfazer (e até expandir) a curiosidade dos estudantes mais promissores mas também mais insatisfeitos. Livros didáticos eletrônicos fortemente vigiados e leitores eletrônicos controlados rigorosamente dificilmente nos darão o próximo Einstein.
Tradução de Paulo Migliacci