Fonte: Revista Língua Portuguesa – 14 de maio de 2015
Proposta conquista os alunos ao pôr em cena um leitor real e mostra que a produção escrita na escola pode, sim, ir muito além da dissertação entregue ao professor
Para quem escrevemos? Em sala de aula, muitas vezes apenas para o professor, encarregado de corrigir redações e provas. Na “vida real”, no entanto, a escrita é muito mais do que a capacidade de encadear frases bem construídas – como ferramenta de diálogo e interação, ela expressa parte do que nós somos e cria uma ponte para o universo das outras pessoas. Mas como motivar a escrita no contexto escolar muito mais pela vontade do que pela obrigação? Muitos professores encontram a resposta em atividades que unem o exercício escolar à realidade fora dos muros da escola, como a troca de correspondências.
Não é difícil encontrar experiências que deram certo. Em Bariri (SP), cidade com cerca de 30 mil habitantes, a professora de língua portuguesa Meire Fiuza Canal promove as trocas entre alunos do ensino fundamental de duas escolas estaduais. Ao longo dos últimos dez anos, a professora testou vários formatos e hoje aponta o que funciona melhor: aquele que estimula de fato a curiosidade do aluno e a preocupação com o interlocutor. Por isso, trocar cartas entre estudantes de escolas ou cidades diferentes tende a dar melhores resultados do que, por exemplo, pedir que as correspondências sejam escritas para familiares, pessoas que os alunos já conhecem e que muitas vezes não participam ativamente da troca.
“O que estimula é essa possibilidade de pensar que o leitor existe”, conta a professora. “Até quem não gosta ou diz que não sabe escrever bem acaba participando. É muito bom para ensinar as convenções da escrita, porque o aluno não quer escrever de forma errada para o outro. Ele tem interesse em apresentar o texto para correção do professor e, depois, em saber qual foi a reação do outro estudante à carta dele.” No blog De Carta em Carta, Meire registra o dia-a-dia das atividades, apresenta reflexões e conta a história do projeto – que se tornou tema de livro e levou a professora a receber o Prêmio Professores do Brasil, criado pelo MEC, em 2009.
Redes sociais X papel
Em Minas Gerais, uma outra experiência de troca de cartas começou em 1997, com apenas quatro turmas, e hoje envolve cerca de 1,5 mil alunos de nove escolas de Belo Horizonte e cidades próximas. São, principalmente, estudantes do nono ano do ensino fundamental e do terceiro do ensino médio. A troca de cartas acontece ao longo do ano e tem como ponto alto um encontro em que todos se conhecem e realizam apresentações culturais. O projeto foi batizado de Intercâmbio Cultural BH-Jabó, em referência à capital mineira e a Jaboticatubas, as primeiras cidades envolvidas na troca de correspondências.
Para a professora Ilma Pereira Nunes Moreira, coordenadora do projeto, o principal atrativo está no mistério que a atividade envolve: nas cartas, os alunos usam pseudônimos, não trocam fotos e não revelam o local exato de onde escrevem. A atividade passou a ser desenhada dessa forma após uma experiência em que os alunos descobriram os perfis de seus pares em redes sociais – um ruído que, segundo Ilma, abalou a proposta original da atividade. Outro mérito da troca de cartas, avalia a professora, está em treinar a capacidade de esperar. “O aluno sabe que vai levar um tempo até ter uma resposta. Em meio à comunicação alucinante nos meios digitais, é muito interessante como essa proposta seduz.”
É possível, entretanto, conduzir a atividade mesmo com uma comunicação paralela em redes sociais. “Não acho que atrapalhe”, avalia Meire. “O aluno percebe que se trata de uma outra linguagem, que o virtual é mais um canal que pode e deve ser usado. Ele sabe que pode escrever ‘pq’ no Whatsapp, por exemplo, mas que na carta deve usar ‘porque’.”
Acima de tudo, uma atividade pedagógica
Segundo as professoras Meire e Ilma, o docente não pode perder de vista que a atividade tem, em primeiro lugar, um propósito pedagógico: trabalhar aspectos da língua portuguesa e da construção textual. Por isso, é essencial que as cartas passem por um professor antes de serem enviadas. “Nós combinamos com os alunos que, nesse contexto, a carta é pessoal, mas não é confidencial”, conta Ilma. Meire aponta que a leitura prévia do professor é importante também para evitar situações que possam causar mal-estar, como um aluno escrever xingamentos endereçados ao outro. Para que a dinâmica funcione, é preciso o comprometimento de todos os professores envolvidos.
Segundo a professora Regina Celi Pereira da Silva, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o sucesso desse tipo de atividade depende justamente da forma como ela é estruturada pelo docente. “É preciso sempre tomar cuidado com o artificialismo. O objetivo é tentar aproximar essas práticas ao máximo de trocas autênticas”, diz a professora. Para isso, o contexto em que a atividade será realizada é muito importante – o professor precisa estar atento às diferenças entre turmas, escolas e cidades.
A descoberta de outras realidades
“Tia, já chegou a carta?” Os alunos do primeiro ano do ensino fundamental de uma escola particular de Cruzeiro (SP) ficam ansiosos pela resposta dos colegas. “Como já trabalhávamos com bilhetinhos, eles tinham noção do que deveriam fazer nessa atividade”, conta a professora Mariana Aparecida. A escola participa do projeto Cartas pelo Brasil, do Sistema de Ensino Poliedro (SEP), que promove trocas de cartas entre crianças de diferentes cidades. Mariana conta que a distância instiga a curiosidade dos alunos e abre espaço para trabalhar com mapas na sala de aula.
João Puglisi, gerente editorial do SEP, diz que a atividade tem duas funções básicas nesse contexto: trabalhar a carta como apoio para a alfabetização e, ao mesmo tempo, despertar a curiosidade da criança em torno de questões “que não estão tão próximas dela, que se referem a lugares que ela nem imaginava existirem”. A atividade é tratada como um projeto complementar, conta Puglisi. Cabe ao SEP cadastrar as instituições interessadas, mapear os alunos e indicar as escolas para a troca de cartas.
Patrícia Pereira Marques, professora de língua portuguesa em Jaboticatubas, participa do Intercâmbio Cultural BH/Jabó e tem experiência com a troca de cartas no nono ano do ensino fundamental e no terceiro ano do ensino médio. “Eu digo para meus alunos que o objetivo é conquistar o outro por meio das palavras. Noto que os estudantes do nono ano tendem a criar mais expectativas quanto ao amigo com quem eles se correspondem, enquanto o aluno do ensino médio é mais ‘pé no chão’, embora também crie um vínculo muito forte”, analisa a professora. “Um aluno do terceiro ano me contou que guarda até hoje as cartas do ensino fundamental.”
Para a professora e pesquisadora Regina Celi Pereira da Silva, a importância da autenticidade é ainda maior no ensino médio. Uma possibilidade é estimular os alunos trabalhando com temas transversais e ligados à cidadania. Regina cita, como uma boa inspiração, a conversa entre alunos e idosos nos EUA promovida por uma escola de inglês e que ganhou grande visibilidade nas redes sociais.
Regina, que pesquisa as práticas sociais de escrita, vê com bons olhos as atividades que associam o ato de escrever à sua função interativa. “Apoio práticas que busquem sair do lugar comum. A escrita perpassa tudo e é muito limitador deixá-la só naquele ‘pacotinho’ da redação tradicional, que o aluno escreve apenas para que o professor corrija. A redação escolar deve ter seu espaço, mas é importante possibilitar a produção de outros gêneros.”
Meire conta que, com a troca de cartas, a melhora na capacidade escrita dos alunos é visível. “Basta comparar a primeira e a última carta que o aluno escreveu no ano”, diz a professora. “Além disso, percebemos um empenho maior. Casos de alunos que, por exemplo, entregam pouquíssimas das demais atividades, mas participam de toda a troca de cartas.” Ilma tem a mesma percepção: “Estudantes considerados apáticos conseguem escrever duas, três páginas. O envolvimento na aula é outro”.
Como estruturar a atividade?
Não existe receita para desenhar uma atividade de troca de cartas, mas muitas vezes a experiência de outros professores pode ser útil. Veja, nos tópicos a seguir, como a professora Meire, de Bariri, organiza atualmente a atividade:
1. A professora pergunta aos alunos de uma determinada sala se eles aceitam participar da troca de cartas. Com a resposta positiva, ela convida uma sala de outra escola – pode ser tanto uma turma dela mesma quanto a de outro professor.
2. É preciso, então, listar os nomes dos alunos e definir os pares. O estudante pode escolher se corresponder com mais de um colega.
3. É hora de planejar a escrita. Normalmente, a professora apresenta a estrutura para a redação de uma carta e um roteiro de temas para que os alunos se apresentem na primeira correspondência. Os alunos começam com um rascunho da carta que pretendem enviar e depois chegam a uma redação final, apresentada à professora. Com o tempo e mais trocas, o diálogo entre os pares vai se desenvolvendo, cada um por um caminho.
4. Todas as cartas são reunidas em um pacote, que será entregue à outra sala. “É preciso tomar cuidado para não perder nenhuma carta”, diz Meire.
5. Para organizar a leitura, a professora pede que os alunos leiam as cartas de resposta apenas quando todas estiverem entregues. “Nesse momento há um silêncio absoluto, em que todos estão lendo. Em seguida, é preciso conter a ansiedade – muitos alunos já querem responder -, mas a próxima etapa pre