DEZEMBRO 1, 2015 (por Hebe Mattos)
É com preocupação que tenho acompanhado a reação indignada, predominante em alguns círculos historiográficos, à divulgação, para consulta pública, do texto de história da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), em elaboração no MEC. Como todos os outros textos da base, trata-se de um texto preliminar, aberto à discussão, construído por uma equipe de pesquisadores da área de ensino da disciplina em questão. Este caráter técnico do recrutamento do grupo de trabalho, efetuado a partir da expertise no campo do ensino da disciplina, tornou possível que o próprio ex-ministro da educação, professor de filosofia e ética da USP, Renato Janine Ribeiro, fosse o primeiro a fazer ressalvas públicas ao texto base de história, em sua conta pessoal no facebook. Um comentário postado por ele teve grande repercussão na imprensa.
“O documento entregue, porém, na sua primeira versão ignorava quase por completo o que não fosse Brasil e África. Pedi que o revissem. (…) Mas o grupo que elaborava a base não entendia assim. Não havia sequência histórica. (…) Queriam partir do presente para ver o passado. No caso do Brasil, por exemplo, propunham a certa altura estudar revoluções com participação de escravos ou índios. E deixavam de lado a Inconfidência Mineira!”, escreveu o ministro.
Li este pequeno comentário, publicado na imprensa, antes de conhecer o texto completo publicado por Renato Janine. Imediatamente me lembrei da minha principal experiência com o ensino da história. Há quinze anos atrás, deixei a meio caminho a coordenação da equipe de história do Telecurso 2000, da Fundação Roberto Marinho, por desentendimentos com a direção da Fundação, que passavam pelo lugar da Inconfidência Mineira nas aulas de história e por um suposto ‘excesso’ do tema da escravidão nas aulas propostas para a história do Brasil. A crítica me soou como um convite para que eu lesse com atenção o que “o grupo que elaborava a base” estava propondo. Pareceu-me que eles podiam estar disputando os repertórios que ainda hoje compõem as narrativas canônicas da história brasileira. Construídos quase todos, como sabemos bem, a partir de uma perspectiva racista e eurocêntrica, no século 19 ou na primeira metade do século 20. Ganhavam minha simpatia.
Eu ainda estava lendo o documento com a atenção que merece, para formar minha opinião sobre ele, quando tive acesso a uma segunda crítica, que se pretendia devastadora. A atual diretoria da ANPUH-Rio de Janeiro convocou uma jornada de estudos para discutir o texto. Já na convocação, me chamou a atenção que o GT História Indígena e o GT Emancipações e Pós-Abolição, que reúnem inúmeros historiadores do Rio de Janeiro, muitos com destacado reconhecimento internacional, não tivessem sido formalmente convidados. E mesmo o GT Ensino de História, presente à reunião, foi desconsiderado na redação do documento final, divulgado no site da Associação. A carta acabou por gerar um pequeno abaixo assinado daqueles que não se sentiam representados pelo texto, encabeçado pelos representantes do GT de ensino de história na reunião e pela minha colega Martha Abreu.
Pessoalmente, me senti profundamente incomodada com o tom dos primeiros parágrafos da carta crítica, que vaticinava que a proposta em discussão estava em flagrante “descompasso com as pesquisas historiográficas de ponta”. Concedia ao texto, apenas, “a boa intenção” de romper com uma perspectiva eurocêntrica e quadripartite do tempo histórico. Ainda que sem sucesso, pois, para os autores, “o tempo histórico é o tempo humano, o tempo da espécie humana em seu fazer-se, o Homem se reconhecendo em suas relações sociais”. Quase parei a leitura após esta frase. Pelo menos na minha área de estudos, o ser humano universalizado no masculino e com agá maiúsculo não se faz presente em qualquer pesquisa de ponta. Há muitos anos.
Voltei à leitura do documento proposto para discussão, com redobrada boa vontade. Não sei se precisamos de uma base curricular comum. Se precisamos, ela sem dúvida deve ser amplamente discutida com a comunidade de educadores, de historiadores e com a sociedade, antes de ser aprovada. Mas fico feliz que tenhamos largado para discussão a partir de um documento tão radical no seu esforço de romper com o eurocentrismo que informa a concepção de história até agora predominante no ensino de história do país. Inclusive nas nossas universidades.
Por onde recortar para apresentar aos estudantes uma história global não eurocêntrica? Do neolítico à internet, como escolher o que estudar? A entrada pela história do Brasil, espaço de inserção política do estudante, faz todo sentido no contexto de um base curricular mínima nacional. E pode ser amplamente cosmopolita, se conseguir articular de forma consistente o local, o global e o nacional. A ênfase nas representações do passado no tempo presente também me pareceu chave interessante para propor recortes em sala de aula, capazes de ajudar o professor a problematizar as noções de tempo e de historicidade, matérias primas da disciplina da história. Os usos do passado no presente são também ferramenta eficaz para elencar conteúdos programáticos anteriores à colonização portuguesa no Brasil, problematizando legados filosóficos, artísticos ou religiosos fortemente presentes na contemporaneidade. No conjunto, porém, parece-me necessário precisar mais quais contextos, em cada uma das fases do aprendizado, permitirão refletir sobre a dimensão temporal da história humana, bem como sobre a alteridade entre épocas e culturas.
De fato, concordo com algumas das críticas elencadas pelo ex-ministro Janine ou pela carta da ANPUH-Rio, apenas me parece que elas devem ser dirigidas aos especialistas que vem trabalhando o documento, para que a proposta seja aperfeiçoada. No texto apresentado, em especial na proposta de ensino médio, o esforço de se libertar da organização eurocêntrica da história resultou, em grande medida, em uma dificuldade de abordar historicamente a centralidade da expansão europeia para a própria construção de uma “História do Brasil”. A incorporação da noção de história Atlântica, articulando América, Europa e África, a partir da expansão marítima e comercial europeia, pode ser uma chave de leitura eficaz para superar o problema. Algum investimento na interdisciplinaridade com a filosofia e a sociologia me parece também fundamental.
A ideia de fazer uma base nacional curricular mínima é em si bastante problemática. Pessoalmente, não gosto da ideia. Currículos mínimos pressupõem consensos mínimos sobre o que deve ser ensinado e isso não é fácil. E também não é estritamente técnico. Em nenhuma área. Nas ciências humanas mais do que nas outras.
Por outro lado, o grupo que elabora a base foi recrutado entre os especialistas em ensino de história, campo que teve importante desenvolvimento nos últimos anos. É uma área que vem pensando há anos como ensinar a história, para quem estamos ensinando história e para que serve a história ensinada. Seus especialistas estão fortemente embasados no que de melhor tem acontecido nas salas de aula do ensino básico e das universidades na matéria. O MEC mostra-se consciente do caráter preliminar da proposta apresentada – e da delicadeza política da missão, o que é bastante auspicioso. A base está aberta para críticas e comentários em um site específico, e diversos historiadores, nacionalmente reconhecidos e com interface com o campo do ensino da história, de diversas áreas, foram convidados a atuar como leitores críticos, conforme adiantou o ex-ministro Renato Janine e relatou Martha, em carta divulgada em sua conta pessoal no facebook. Outros historiadores e nossas associações serão todos ouvidos. Pessoalmente, redigi uma pequena contribuição sobre o texto, que pode ser acessada aqui.
Com as tensões teóricas e políticas inevitáveis à decisão de construir um currículo mínimo nacional, e tendo em vista a obrigatoriedade legal de abordar a história indígena, da África e da cultura afro-brasileira, o trabalho me parece estar muito bem encaminhado.
Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 2015
Hebe Mattos